10/23/2009

Lua

Rezam em senzalas as mucamas para um corpo pagão noturnamente iluminado. A reza baixa murmura agradecimentos, nobres frente à súplica suja de lodo que os senhores de engenho dedicam suas preces. De mãos arqueadas, olhos encimados à longa linha que trespassa o horizonte, ditam um mantra oral e de muita clareza as mucamas que nesta hora deveriam dormir na senzala. Mas superior aos sonhos é a prece rezada. Mais se fazem concentradas à luz que provém do céu, assentadas em seus rotos lençóis de linhas vadias do que as donas da fazenda, ajoelhadas em frente pedestais sob a santa de pedra. Nossa Senhora Aparecida, pintada com tintas feitas de frutos do chão, esculpida em pedra-sabão que abunda nos rios. As donas rezam à terra, aos corpos que alcançam e portanto rezam ao que tocam. A Nossa Senhora dos brancos é feita pelos brancos, de materiais que colhem os brancos. Rezam a si mesmos, os brancos. Na senzala, a Nossa Senhora que recebe as devoções não lá se encontra. Não se colhe nos beira-rios o material do qual se a faz, não se pinta das cores dos frutos da terra. A Nossa Senhora da senzala não se toca. A Lua é a Nossa Senhora da senzala. Para as mucamas, de mãos coalhadas e fissuradas, unidas ou erguidas durante a gratidão cantada em murmurios, nomeia-se a Lua Nossa Senhora do Silêncio. Rezam os escravos aos céus e para aquilo que não é deles nem nunca será e deles serão as graças ouvidas então. Não rezam a si mesmos, nem à aldeia, nem à vida que se arrasta nos dias de sol e se fincam nos dias de tronco, nem à desgraça que deveriam não aceitar. Agradecem ao que lhes foi dado, mesmo que este chegue perto do nada. É a fé sendo um ponto de luz num mar de escuridão. É a Nossa Senhora do Silêncio, calada, vazia no céu negro abissal, iluminando os olhos de quem a pede perdão.

Um comentário:

Breno Souza disse...

Lindo, Júlio! Parabéns